Em Junho de 2015, foi-me pedida a revisão de um artigo submetido à Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão.
Tratava-se de um artigo com inúmeros erros e importantes omissões. Qual não foi
o meu espanto ao ver o artigo publicado, sem correcções, no vol. 14, n.º
3, Setembro de 2015, pp. 26-36, da referida revista, assinado por Ana
Teresa Tavares e Rita Espanha, com o título «Marketing social: de curto passado
a futuro promissor», integrado num estudo de doutoramento da primeira, orientado
pela segunda. Para que conste, aqui fica, publicamente, a minha revisão crítica
(segundo a grelha da revista) e a minha profunda lamentação pela maneira
irresponsável como se editam coisas destas, em Portugal. Quem desejar ler o
artigo em causa, encontra-o disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpbg/v14n3/v14n3a04.pdf
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REVISÃO
PONTOS FORTES
Este
artigo não tem, sejamos claros, pontos fortes. Sob a capa de uma acumulação de
nomes e referências, não passa de um mero atrevimento de quem não tem qualquer
conhecimento sério de ciência e, especificamente, de marketing social,
nomeadamente da sua posição em Portugal.
PONTOS FRACOS
O que se espera, em
ciência, é a compilação sistemática de todo o conhecimento disponível e o
desenvolvimento de processos e conhecimentos que o analisem, reorganizem,
disseminem ou, acima de tudo, introduzam mais aperfeiçoados aspectos e
perspectivas. Poder-se-ia esperar que este artigo fosse uma review do
marketing social, tendente a apresentá-lo em Portugal. Para tal teria de ser,
no mínimo, sistemático e rigoroso quanto ao conhecimento produzido nesta área,
neste momento. No máximo, teria de introduzir uma nova síntese e avaliação do
conjunto desse conhecimento. Não é uma coisa nem outra!
Começa, nomeadamente,
pela falta de leitura e estudo de um texto fundador e essencial como o de Wiebe
(este autor é assiduamente citado por inúmeros «autores», que querem palrar
sobre marketing social, sem nunca o terem sequer lido, o que leva a citações
repetidamente erradas; a referência correcta de Wiebe é Wiebe, G. D. (1951-
1952). «Merchandising commodities and citizenship on television». Public
Opinion Quarterly, 15 (Winter), pp. 679-691. Os autores deste artigo, como
não o leram e muito menos estudaram, chegam a referir-se a ele nestes termos
incríveis: «Wiebe em 1952 “Why can´t you sell brotherhood and rational thinking
like you sell soap” (Salmon, 1989; Andreasen, 2002; Stead et al, 2007a)»… com esta palhaçada de citar três autores para citar
mal e não ter lido o único que deveria ser lido, estudado e referido
correctamente: Wiebe.
A partir daqui, tudo
não passa de uma «pesca» de referências, claramente desconhecidas das autoras
ou não conhecidas com profundidade e ponderação, nos originais e no seu
enquadramento devido. Um mero exemplo: na teoria do marketing social, é
incontornável, não há ninguém credível que o negue, o desenvolvimento
introduzido por Alan Andreasen, especificamente em Andreasen, A. R. (2006). Social
Marketing in the 21st Century. Thousand Oaks, CA: Sage (na senda, aliás, de
Goldberg, M. E. (1995). «Social marketing: are we fiddling while Rome burns?». Journal
of Consumer Psycologhy, 4 (4), pp. 347-370). Trata-se da consideração de um
papel alargado (wider role) do marketing social, agregando dois níveis:
uma abordagem directa (downstream approach), visando os indivíduos
envolvidos em comportamentos a melhorar; e uma abordagem envolvente (upstream
approach), dirigida a factores estruturais e sociais, dependente dos
respectivos decisores. Foi este desenvolvimento conceptual que reforçou a
necessidade, no âmbito nomeadamente das
políticas públicas, de enquadramentos contextuais e nacionais das acções
de marketing social, tendo em vista a consistência e eficácia das suas
intervenções pontuais. Pois bem, nesta pretensão de paper não há
absolutamente nenhuma referência a esta referência fundamental.
Por outro
lado, Portugal não se encontra, de modo nenhum, numa fase de «apresentação» do
marketing social, que este proposto paper quer fazer supor. Aquela
disciplina já é leccionada aqui, pelo menos, desde 1992; tem autores formados
em prestigiadas escolas estrangeiras (University of South Florida, University
of Stirling, University of Manchester, entre outras); tem fundadores de
organizações internacionais (European Social Marketing Association), tem
personalidades que já exerceram importantes funções internacionais (Paulo K.
Moreira, director adjunto da unidade de Health Communication do European Centre
for Disease Prevention and Control, ECDC); tem diversas teses sérias apresentadas
em universidades portuguesas; tem publicações que merecem atenção e respeito –
que o autor desconhece ou não refere; tem pessoas que participam assiduamente
em importantes conferências internacionais, uma delas, aliás, realizou-se em
Lisboa, a 1st European Social Marketing Conference, em 2012, com a
presença de destacadas referências internacionais, como Jeff French – que veio,
aliás, ao ISCTE-IUL, em 2011, para um curso e conferência – ou Gerard Hastings.
Assim sendo, querer surgir, no nosso país, como «apresentadoras» do marketing
social, agora, como as autoras o fazem, é, no mínimo, ridículo.
Em suma, este artigo é
uma maneira de querer aparecer na ciência, que deve ser repudiada pelos
cientistas e substituída, a admitir que isso é possível, pelo estudo profundo,
sistemático, demorado, participado, com humildade e grande sentido autocrítico,
sem exibicionismos e pressas. Pessoas como as autoras desta pretensão de paper
científico devem ser bem orientadas naqueles sentidos e uma instituição
universitária como o ISCTE-IUL e a sua Revista Portuguesa e Brasileira de
Gestão não devem acolher nem permitir coisas como esta.
O estilo mediático de
pensamento que domina a actualidade, feito de simplismo, ignorância
intencional, exibicionismo, imediatismo, palavreado e irresponsabilidade, onde
títulos de doutor e professor já pululam impunemente, deve ser totalmente
rejeitado pela ciência e pelas publicações científicas.
SUGESTÕES PARA MELHORIA
Tal como está, esta
pretensão de paper científico não tem, na verdade, hipótese de melhoria,
já que exige a completa reformulação dos seus fundamentos, processos e
objectivos.
QUANTO AO TÍTULO
A afirmação do título
não tem fundamento (o marketing social foi enunciado formalmente em 1971, tem
ampla implantação pelo mundo, revistas científicas próprias, enormes congressos
e conferências, tem várias associações nacionais e internacionais, tem
importante aplicação em intervenções e instituições sociais). Considerar isto,
no âmbito do marketing – que, já de si, tem, apenas, pouco mais de cem anos –,
«uma área de curto passado», não é correcto. O marketing social, tal como
outras áreas do marketing, que foram nascendo na segunda metade do séc. XX, tem
já uma existência sólida e um considerável capital crítico, dispensando quem o
venha, com ar de «descobridor da pólvora», dar como «de curto passado»,
sobretudo quando se trata de alguém que nunca o acompanhou com profundidade.
Por outro
lado, quanto ao «futuro promissor», para sustentar essa declaração o autor
teria de aplicar correctamente métodos de prospectiva ou conexos (trendwatching,
foresight, future studies, delphi, etc), para demonstrar
essa afirmação. De outro modo, é melhor ficarmo-nos pela astrologia da Maia.
QUANTO
AO RESUMO (demonstrar as principais partes do
artigo – objectivo, problema, aspectos teóricos, metodologia e resultados –,
objectividade, consistência e clareza)
Nada
disso ele possui. Apenas uma definição «confusionista» de marketing social, uma
afirmação de review, que já se viu o
que é (não é!), e uma conclusão, que já se viu com que fundamento: nenhum.
QUANTO
AO CONTEÚDO (argumento,
desenvolvimento, metodologia, conclusão, etc.)
Para além
do que já foi dito, é gritante a ausência de uma abordagem explícita da metodologia
usada. Uma review é um importante
processo de estudo e implica que um autor deixe claros os seus critérios e como
os processou.
QUANTO
À FORMA (estrutura, linguagem, legibilidade,
etc.)
Uma
sucessão de referências, más cópias e afirmações dadas como evidências, mas sem
qualquer consciência séria do que se está a dizer. Um exemplo: cita-se Dann,
2010 (já agora conviria saber em que página, o que efectivamente ele diz e como
o sustenta), para dizer que houve «quarenta e cinco definições académicas
revistas por pares em quarenta anos de atividade da disciplina», pretendendo-se
fazer erudição sobre o assunto. Esperar-se-ia, contudo, que um paper escrito em 2015 apreciasse as
reflexões de definição feitas até hoje. Mas sobre isso nada, nomeadamente os
importantes contributos dados por Nancy Lee et
al. [ver Lee, N. R., Rothschild, M. L. & Smith, W. (2011). «A
declaration of social marketing’s unique principles and distinctions». Leaflet
published by the authors] ou em Gerard Hastings et al. [ver Hastings, G., Angus, K. & Bryant, C. (eds) (2011). The Sage Handbook of Social Marketing.
London: Sage Publications], até muitos outros autores importantes, desde 2010,
incluindo os recentes e importantes volumes editados por David W. Stewart [ver Stewart,
D. W. (ed) (2014). Persuasion and Social Marketing.
Santa Barbara, CA: Praeger], bem como o importante ECDC Technical Document [ver
European Centre for Disease Prevention and Control (2014). Social marketing guide
for public health managers and practitioners. Stockholm: ECDC – é incrível
alguém que está a estudar «O envolvimento dos portugueses com temas de saúde
pública: um contributo para as estratégias de marketing social e comunicação de
assuntos públicos» (nome da tese em causa) e não conhecer este documento!!! Mas
que doutoramentos são estes???] ou a mais recente abordagem de Jeff French e
Ross Gordon [French, J. & Gordon, R. (2015). Strategic Social Marketing.
London: Sage Publications]
COMENTÁRIOS ADICIONAIS
PARA AS AUTORAS
Coisas de base. Estudar
com muita seriedade. Ser sistemático, ser crítico, sobretudo de si próprio. Ser
exigente. Aconselhar-se com cientistas sérios e provados. Frequentar fóruns com
pessoas relevantes para esta área, que pretendem estudar. Quando entenderem que
podem dar um contributo, devem focar-se num campo e numa óptica específica,
onde possam experimentar, aprofundar e analisar cuidadosamente, por forma a
produzirem um contributo efectivo, original e progressivo.
Se, por acaso, as autoras,
para mal dos nossos pecados, já leccionam, então recomendo-lhes repensarem
profundamente a sua atitude na vida e reflectirem bem no «crime» que é passar
barbaridades, como as que têm nesta sua pretensão de paper, para pobres
alunos. Se, também por acaso, as autoras foram orientadas por alguém para
escrever esta pretensão de paper, então os mesmos conselhos se devem
destinar a tal pessoa ou pessoas.
Diz-se, aliás, no texto,
que se trata de algo feito «num curso de doutoramento». Nestes casos, sobretudo,
é recomendável que se ponham os alunos a estudar a sério, com profundidade, com
rigor, com tempo e que, quando se abalançarem a escrever algo, que o façam em
âmbitos bem definidos, em proporções sensatas, em processos de acumulação
razoável de conhecimento. Querer passar logo a um autor científico, publicado
numa revista acreditada, sem estudar nem saber citar um autor fundador da área
estudada, é uma clara insensatez, que descamba em óbvia desonestidade
intelectual.
RECOMENDAÇÃO FINAL
Não
publicar o artigo.